Monday, February 01, 2010

Dia Sim, Dia Não (Ficção)

A paisagem campestre refletia uma calma tremendamente inquieta. As árvores eram ladeadas por algumas parentes menores e algumas primas mais distantes de espécies aleatórias, cujas folhas, dedilhadas pelo vento, amplificavam o mais pesado dos rock’n’rolls, inaudível a ouvido nu. O homem observava (e ouvia) tudo isso de lugar algum, quase não agüentando o som, mas estudando o audiovisual deveras incomum para qualquer lugar.
À música pesada foi adicionado um solo de trompete, no estilo frenético de Miles Davis. Estranhamente pareceu fazer parte do mesmo arranjo, mas rapidamente a base pesada utilizou-se de um fade out para entregar o som ambiente ao solo. O rock’n’roll se tornara ultrapassado.
O trompete continuava lá, louco e cadencial, mas não era tocado pelo vento - o que seria mais lógico, se tratando de um instrumento de sopro. A cena já era outra. Lembrava um quarto ou uma sala sem mobílias, apenas uma cadeira onde o homem agora estava sentado. As paredes eram pintadas com uma névoa cinza embaçada, transformando o lugar num interior provavelmente infinito e labiríntico, acaso fosse explorado. No meio desse quarto/sala, um rosto familiar com um sorriso fabuloso tomou forma, em close-up. Ganhou as feições femininas tão íntimas ao homem que observava. Ouviu a mulher dizer coisas amorosas. Ouviu ela sugerir um plano improvável para tudo se resolver. Talvez tudo se resolvesse mesmo, se a mulher não tivesse desaparecido e o abandonado ao som do trompete. Ou melhor, agora era um saxofone, leve e apaziguador, quase romântico, cujas notas desenhavam um futuro melhor.
Um maldito contrabaixo arruinou essa paz momentânea. Nada contra contrabaixos, ou contra baixos, o homem tinha. Mas aquele era o perfeito som do suspense, do incerto. Entrou de sola, solando sobre o tranqüilo sax e quebrando a harmonia, exigindo o tom do momento. O rosto dela reapareceu, agora mais definido e mais amoroso, munido de um corpo explêndido, como sempre fora, e o beijou. O background já não tinha névoas ou árvores-guitarra, era um misto de alvorecer e crepúsculo. Não se sabia bem àquela hora, era preciso esperar e ver se escureceria ou se clarearia. O sax tranqüilo e o contrabaixo feroz digladiavam enquanto o homem inquiria a mulher sobre o plano. Tinha uma falha decisiva: o outro homem. Aquele sem nome, que não teria coragem de meter a cara nesse sonho nem que fosse uma cadeia infinita de pesadelos costurados.
Mas o sax ganhou a discussão com o contrabaixo. A mulher sussurrou no ouvido do homem. Sentenciou que tudo terminaria bem, que ele era presente e o outro era passado; ultrapassado, como o rock’n’roll pesado.
E o alvorecer se definiu. O sax, definitivo e atemporal, solou o fim do sonho. O homem abriu os olhos e viu a mulher, que ainda dormia, deitada ao seu lado.




P.S. Valeu a leitura, agradeço.